A cirurgia já é feita em cães e gatos há vários anos, mas somente em último caso e em alguns animais

A medicina veterinária continua avançando a passos largos para atender cada vez melhor as necessidades de cuidados dos nossos animais e procedimentos que pareciam restritos aos seres humanos, como transplantes de rins, hoje também são realidade para pets há vários anos – inclusive no Brasil. As primeiras cirurgias experimentais foram realizadas pelo médico-veterinário Luiz Augusto Carvalho, na UFRJ, enquanto o primeiro relato de um transplante em rotina veterinária no país (ou seja, de forma não experimental) é de responsabilidade de Guilherme Lages Savassi Rocha, em outubro de 2002. O médico-veterinário fez o procedimento no Hospital Veterinário da Universidade Federal de Santa Maria (RS) na cadela Cocker Natasha, que com apenas 1 ano e oito meses já sofria de Insuficiência Renal Crônica. Apesar do sucesso da cirurgia, a cachorrinha morreu poucos dias depois, ao rejeitar o órgão novo.
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O médico-veterinário Márcio Bernstein, especialista em nefrologia e urologia veterinária, explica que é comum existir esse tipo de reação adversa, especialmente nos cães. “O procedimento em si, do transplante em cachorros, é relativamente simples, pois nós temos a tecnologia, os equipamentos e a expertise, mas eles sempre vão ter uma reação e perder esse rim novo, porque o cão tem vários tipos e subtipos de sangue e é virtualmente impossível conseguir um doador com estes mesmos tipos e subtipos sanguíneos”, cita ele, que é fundador da Renalvet Centro de Nefrologia, Urologia e Hemodiálise Veterinária, primeiro centro do tipo na América Latina. Existe uma dificuldade até mesmo em fazer a tipagem sanguínea do cachorro.
A situação é um pouco mais favorável no caso de gatos, pois os felinos domésticos têm, basicamente, três tipos de sangue (A, B e AB) e desde que o animal doador tenha a mesma tipagem sanguínea, é possível fazer o procedimento. É por isso que os transplantes nos bichanos são procedimentos cirúrgicos muito mais comuns. O transplante renal também é mais simples do que com outros órgãos porque o rim tem muito menos artérias e veias para serem religadas, do que fígado ou o pulmão, por exemplo. “No rim temos a artéria renal, a veia renal, duas ou três ramificações e o ureter. Perto de outras cirurgias de transplantes, ela é mais simples”, explica Márcio.
TRANSPLANTE NÃO É UMA SOLUÇÃO SIMPLES
“Muito tutor que vê seu gatinho ou cachorrinho doente com um problema renal pensa que o transplante pode ser a solução para ele, mas é muito errado pensar isso”, alerta o especialista. Márcio explica que na maior parte das vezes o rim não fica doente sozinho, mas outras condições de saúde levam à piora do quadro. E para que o pet possa fazer a cirurgia, ele precisa primeiro, estar estável. “Muitos pets já chegam na clínica bastante debilitados, com várias situações que estão afetando o rim, então, o primeiro passo não é a cirurgia, mas sim, cuidar da estabilização do quadro de saúde deles”, aponta. Para tanto, é preciso descobrir o tipo de doença renal que ele tem e suas causas. E o tratamento envolve, entre outros, a hemodiálise. Entre as doenças que podem afetar os rins dos cães e gatos estão: a doença periodontal, diabetes, FIV, FeLV, PIF, problemas hormonais, hipertensão, problemas cardíacos, doenças transmissíveis por carrapatos, leishmaniose, tumores, entre várias outras. “Diante de todas essas possibilidades de casos, como vamos pensar em um transplante?”, reforça Márcio.
O candidato adequado para um transplante de rim – ou melhor, um “implante de rim”, como aponta o nefrologista – é: um gato que não tenha nenhuma virose ativa (como FIV, FeLV e PIF), nem a comum Tríade Felina (condição que se manifesta com três doenças inflamatórias de forma simultânea, envolvendo o fígado, o pâncreas e o intestino delgado), nem algum tipo de tumor. Ou seja, ele deve ser um paciente renal crônico sem nenhuma outra fonte de agressão ao rim. “Caso contrário, podemos fazer o implante renal e há grandes chances de o animal perder esse rim novo”, declara ele. E por quê? Uma vez que o animal recebe o órgão novo através do transplante, ele precisará tomar uma medicação imunossupressora pelo restante de sua vida para que não haja rejeição – condição inviável para um gato que já enfrenta, por exemplo, a virose da FIV ou um tumor.

TRATAMENTO PRÉ-TRANSPLANTE
Como o nefrologista explicou, a primeira intervenção em um pet que pode precisar de transplante geralmente, é a estabilização de seus sintomas agudos, “não importando se é um paciente agudo ou crônico que agudizou, dando suporte renal”. É o caso de muitos pacientes que chegam para tratamento de emergência na Renalvet, compartilha Márcio.
O próximo passo é identificar exatamente quais são as causas que estão agredindo o rim e iniciar o tratamento delas. “É importante deixar claro que, na maior parte das vezes, os animais de estimação que sobrevivem a este processo de recuperação nem vão mais precisar de um transplante. Tenho pacientes que estão vivendo bem há muitos anos, até 8 anos, depois de saírem dessa crise após a nossa intervenção na clínica”, revela Márcio. Portanto, o médico-veterinário sempre pede que o tutor pondere sobre a decisão de realizar o transplante: “em média, animais transplantados acabam vivendo de um ano a um ano e meio, por causa do bombardeamento de imunossupressores que, a médio e longo prazo, vão lhe fazer mal. Tem aqueles que vivem mais, mas a média é essa. Assim, precisamos avaliar muito bem se vale mesmo a pena realizar o procedimento. Cada caso é individualizado”, completa o especialista.
DE ONDE VEM O ÓRGÃO TRANSPLANTADO?
Um dos possíveis doadores do órgão a ser transplantado é o animal que acabou de falecer, está com o rim em condições adequadas e tem o sangue compatível com o pet que precisa da cirurgia. Neste caso, o órgão precisa ir imediatamente para o centro cirúrgico após o óbito. Mas, claro, essa não é a situação mais comum. Geralmente o doador é um pet que está em um abrigo ou uma ONG para ser adotado. Após exames que atestem a compatibilidade sanguínea dele com o paciente renal, o tutor deste último precisa se comprometer em adotar o doador, salvando assim não uma, mas duas vidas. Márcio garante que o animal que doa o órgão, estando saudável e sendo bem cuidado, tem uma qualidade de vida igual a qualquer outro pet.
UM FUTURO MAIS TECNOLÓGICO E VIÁVEL
É possível que o avanço tecnológico, com pesquisas em célula-tronco e desenvolvimento de órgãos artificiais, traga melhores condições para o futuro dos transplantes e implantes. “Talvez agente chegue num ponto em que possamos pegar esse órgão artificial para implantar sem riscos de rejeição ou necessidade de imunossupressão. É o que esperamos nos próximos anos para humanos e para os animais também”, explica Márcio. O nefrologista acrescenta que já existem muitos estudos e pesquisas neste caminho e ele acredita que em até uma década isso possa ser uma realidade na rotina veterinária.
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Agradecemos a colaboração de Márcio Bernstein. Primeiro especialista em nefrologia veterinária com título reconhecido pelo CRMV-RJ e pela Justiça Federal, graduado pela UFRRJ em 1987. Fundador da Renalvet Centro de Nefrologia, Urologia e Hemodiálise, primeiro centro de Nefrologia, Urologia e Hemodiálise veterinária da América do Sul, e primeiro veterinário a realizar a técnica de hemodiálise no Brasil, em 1998. Vice-presidente da Associação Latino Americana de Nefro-Urologia veterinária, na Colômbia. Atende no Brasil, EUA, Portugal, Índia e Emirados Árabes. www.renalvet.com.br (11) 93026-3652
Por Aline Guevara