
É um senso comum afirmar que gatos são mais difíceis de lidar do que cachorros, que eles têm um temperamento individualista e arisco. Mas a realidade é bem diferente da percepção. Para a consultora certificada em comportamento felino Letícia Orlandi, ainda que os felinos domésticos sejam vistos como sistemáticos e metódicos, na verdade, eles fazem diariamente uma série de concessões para viver em territórios com características muito distantes do que seria seu habitat natural e que raramente atendem às suas necessidades básicas. “Não porque os tutores não queiram atender a essas necessidades, mas por desconhecimento em relação à existência ou importância delas”, conta a especialista, que é pós-graduada em Comportamento Animal e única profissional sul-americana certificada pela Pet Sitters International.
Antes de entender mais sobre o comportamento do gato e quais são as regras de convivência com eles, é preciso ter clareza sobre os cinco pilares que regem o ambiente saudável para os felinos.
1) Lugares seguros: eles precisam ter acesso a locais onde não serão incomodados por ninguém, sejam pessoas ou outros animais. Estes funcionam como rotas de fuga e refúgios, de onde o gato consegue controlar melhor seu ambiente. Por isso podem recorrer a tocas, esconderijos e lugares elevados;
2) Recursos múltiplos e descentralizados: esse pilar é essencial se o gato convive com outros animais, para evitar conflitos. Água, comida, arranhadores, pontos de observação elevados, locais de descanso, brinquedos e caixas de areia devem ser sempre multiplicados e setorizados (por exemplo: comida longe da água e as duas longe da caixa de areia);
3) Oportunidades para exibir comportamento predatório: diferente de outra informação que costuma ser senso comum sobre felinos, gatos não são animais que não precisam de muitos cuidados ou atenção – eles precisam de brincadeiras interativas com seus tutores. Através delas, que devem ser diárias, eles têm enriquecimento ambiental simulando comportamentos de caça;
4) Respeito ao olfato: este é um sentido muito importante para o gato, pois ele se sente seguro em um local quando reconhece suas marcas químicas. Portanto, é preciso tomar cuidado com o uso de produtos com cheiros fortes na casa ou com areias sanitárias perfumadas. “Por isso é importante desmascarar essa história de que ‘gato gosta apenas da casa’. Não se trata disso. Ele forma vínculos com seus tutores e com outros animais, mas, se um processo de mudança não for feito de forma gradual, ele terá a tendência de voltar ao território anterior, por não se sentir seguro no novo, não reconhecer os odores e visualizar as marcas produzidas por seus arranhões e pelo depósito de feromônios”, reforça a consultora comportamental.
5) Interação respeitosa entre humanos e gatos: felinos domésticos são sim animais sociais, mas existem alguns limites, e o consentimento é fundamental para melhorar a relação entre tutor e pet. “Todos os tutores se beneficiariam muito em aprender a linguagem corporal do gato e fazer o teste do consentimento. Faça carinho muito rapidamente na região da cabeça. Ele virou o rosto? Mudou de posição? Colocou as orelhas para trás? Agitou a cauda? Não faça mais carinho. Agora, se ele se estica na direção da sua mão para ganhar mais carinho, aproveite”, descreve Letícia.
Regras felinas na prática
Com base nas informações sobre os cinco pilares listados acima, a consultora comportamental lista algumas das principais regras de convivência felina para tutores e tutoras de gatos:
1) Mudanças de ambiente feitas gradualmente
Vai mudar de casa com seu gatinho? Então precisa tomar alguns cuidados. Lembre-se: quando nos mudamos para um novo lugar, ele perde totalmente suas referências olfativas e marcações visuais e pode se sentir ameaçado, inseguro. A chave para fazer isso de forma mais tranquila, diz Letícia, é fazer uma mudança gradual. Como? “Separando um cômodo na nova casa para ser o ‘acampamento-base’, com todos os recursos essenciais aos gatos, como caixa de areia, comedouro, bebedouro, arranhadores, camas, mantas e outros objetos que estejam impregnados com o odor deles. Outra medida é colocar o difusor elétrico de feromônio sintético na casa nova dois dias antes da chegada dos gatos”, sugere a consultora. Os gatos devem ficar, inicialmente, somente nesse ambiente. Uma vez que comecem a comer e beber normalmente, podem ser gradualmente apresentados ao restante da casa, evitando assim uma sobrecarga de estímulos. “Vale lembrar que eles só devem ir para a casa nova depois que toda a mudança estiver feita e as janelas teladas. Eles são os últimos a chegar ao ambiente.”
2) Novo gato (ou cão)? adaptação deve ser feita em etapas
Colocar o animal novo rapidamente em contato com o gato não é uma boa ideia, pois a situação normalmente leva a conflitos, lesões e até doenças causadas por estresse. “Gatos veem a chegada de um novo felino em seu território como um potencial competidor por seus recursos e não como um novo irmão”, lembra Letícia. A apresentação de ambos também precisa ser gradual e por etapas: aos poucos, devem ser feitos – sempre sob supervisão – encontros com visualização parcial sem acesso direto, visualização total sem acesso direto, encontros no mesmo ambiente com restrições, encontros rápidos sem restrições e encontros mais demorados, até que cheguem à convivência diária. Todas as etapas devem ser acompanhadas de associações positivas e da multiplicação de recursos pela casa, ou seja, com abundância de pontos de alimentação, hidratação, descanso, brincadeira e eliminação.
3) Regras para o comedouro
Este deve ficar sempre longe dos potes e fontes de água e da caixa de areia. Também é importante não obrigar os gatos a comer muito próximos uns aos outros, mantendo uma distância entre os comedouros. Eles também não devem receber muita comida, pois, se ela ficar muito tempo depositada no pote, vai perder odor e crocância. “O ideal é pegar a porção diária recomendada para o peso do gato e dividir em várias porções ao longo do dia. Gatos comem pouca quantidade de cada vez.”
4) Definindo as caixas de areia
Letícia explica que a casa precisa ter não só uma caixa a mais do que o número total de gatos da casa, mas esse número convertido em “pontos de eliminação”. “Se temos dois gatos, é preciso ter três pontos diferentes da casa com caixas de areia. Um ponto pode tranquilamente ter mais de uma caixa, mas precisam ser três pontos distintos.” A estratégia ajuda a evitar conflitos entre os animais. As caixas devem ser limpas duas vezes por dia e devem ter uma superfície equivalente a um gato e meio, para que ele possa dar a volta em torno de si e enterrar urina e fezes.
5) Otimização ambiental e verticalização
A verticalização, ou seja, fornecer espaços elevados para que o gato manifeste seus comportamentos naturais de escalar e controlar seu ambiente, é importante para manter o bom comportamento do felino. Os espaços evitam disputas entre os animais da casa e oferecem pontos de segurança para o felino. É possível oferecer espaços adequados com a instalação estratégica de prateleiras e nichos.
6) Lidando com a mudança de móveis
Mudanças grandes nos móveis da casa merecem atenção. “Se você vai trocar sua cama, por exemplo, procure não lavar os lençóis e colchas que já estavam sendo usados, para poder colocar sobre a cama nova assim que ela chegar”, aconselha Letícia. Assim, o pet ainda reconhece os elementos e evita possíveis estresses e comportamentos inadequados, mas é normal que o móvel novo cause interesse e curiosidade.
7) Mudanças na família
A chegada de um bebê, a perda de alguém que morava na casa ou a chegada de um novo morador traz mudanças na rotina de todos os moradores, e isso é percebido pelo gato, que pode ficar estressado. “No caso da chegada do bebê, permita que os gatos participem do processo; tente, ao máximo, manter a rotina dos animais; e tome decisões pensando também no bem-estar deles. Se uma porta que antes ficava aberta o dia inteiro passar a ficar fechada em alguns momentos, comece a fazer associações positivas com o momento de fechar a porta, antes da chegada do bebê”, indica a consultora. Caso as alterações de comportamento sejam muito drásticas ou persistentes, um especialista comportamental pode ser consultado.
8) Relação saudável com a caixa de transporte
Nem todo gato aceita bem sua caixa de transporte, mas ela não precisa ser vilã. Para mudar essa relação, deixe-a sempre disponível no ambiente, como uma toca ou refúgio, com mantinhas e cobertinhas aconchegantes, e associe a entrada do animal na caixa com alimentos especiais e brinquedos. Ela deve ser, de preferência, rígida, com abertura superior e grande o suficiente para que o gato consiga dar uma volta em torno do corpo e ficar sentado dentro dela. “Nos momentos em que for necessário o transporte, opte por cobrir a caixa com uma capa própria ou uma toalha grossa, bloqueando a visão externa. O uso de feromônio sintético em spray 15 minutos antes de colocar o gato na caixa também é recomendado”, indica Letícia.
Por: Aline Guevara
Agradecimento:
Letícia Orlandi
Consultora certificada em comportamento felino e canino. Pós-graduada em Comportamento Animal, única profissional sul-americana certificada pela Pet Sitters International. Instagram: @petsdalets